VALORES HUMANOS
Descrição da imagem: desenho de Zeus, imponente, forte e barbudo, segurando seu raio (poder característico). Líder dos outros deuses.
Despirmo-nos
diante de uma sociedade, ainda que na condição desumana de invisíveis, não é
tarefa das mais agradáveis. Confesso ter sido bastante desconfortável ter
aberto o cesto de "roupas sujas" para lavá-las, enxaguá-las e
pendurá-las com os operadores do Direito. Todavia, fui obrigada a fazê-lo no dia 21 de outubro de 2014, no maior
evento da América Latina, ocorrido no Riocentro e traduzido na XXII Conferência
Nacional dos Advogados. Ser militante de
uma gigantesca causa humanitária para lutar, tal incumbência faz parte do
cotidiano.
De antemão,
rendo os meus agradecimentos à gestão/2014 do Conselho Federal da Ordem dos
Advogados, à OAB/RJ e ao meu presidente da Comissão Especial da Tecnologia.
Marcus Vinícius Furtado Coelho, Cláudio Lamachia, Felipe Santa Cruz e Luiz
Cláudio Allemand, por serem diferentes, integraram as pessoas com deficiência
no magnífico evento, dando-me a honra de ter sido uma das palestrantes da
Conferência. Ocasião essa na qual pude falar sobre a inacessibilidade do
Processo Judicial Eletrônico, o famoso PJe, que vem sendo real assombro na vida
dos advogados com deficiência, dos idosos, de todos os operadores do Direito
que não tem acesso a banda larga na internet (mais de 50% dos municípios
brasileiros)...
Amigos
leitores, reflitam: DIREITO, ONDE ESTÁ E PARA QUE SERVE? Lamentável, como
advogada, deixar esse tipo de questionamento para o desenvolvimento das ideias
que vêm a seguir. Real constrangimento! Sinto profunda vergonha de ter que
reconhecer que o Poder Judiciário, em especial o Conselho Nacional de Justiça e
o Supremo Tribunal Federal, ignora a Convenção de Nova Iorque e seu Protocolo
Facultativo.
Ajudem-me a
responder: como o CNJ, ao arrepio da Carta Cidadã e da nossa Convenção, teve o
atrevimento de EXCLUIR tantos operadores do direito do exercício da profissão,
como se faz na cata de feijão "bom" para ir à panela? Que
super-homens são esses que estão acima da lei?
Tenho para
mim que o caminho da resposta está na cultura do brasileiro que tem, como
escopo, os portugueses brancos de formação aristocrática. Foram os
privilegiados - amigos do rei - que mereceram a distinção de embarcar nas naus,
juntamente com a Família Real que, às pressas, desembarcaram em solo brasileiro
em 1808.
Puxo o zoom
da câmera para dezembro/2013, quando o então ministro Joaquim Barbosa, à época
presidente do CNJ e STF, baniu Deborah Prates da advocacia ao negar-lhe o
direito de igualdade com os demais operadores do Direito. Pisou em sua
dignidade humana e vexou a Nação.
Em 2014,
palestrando na XXII Conferência, interpreto com mais precisão o ocorrido.
Naquele desastroso momento ainda ouço Barbosa gritando: você sabe com quem está
falando? eu estou no topo da pirâmide e acima da lei; eu sou a lei, o rei. Nossa,
de nada valeram meus argumentos constitucionais e, pelo meu inconformismo ante
a horrível situação, foi que o então ministro deu prova do quanto o povo
brasileiro ama a distinção, a desigualdade, o preconceito. Sentindo-se Zeus
(governante de todos os deuses na mitologia grega) continuou destilando a sua
maldade, sugerindo: CALA A BOCA! E como continuei, o máximo ex-ministro
escreveu com seu teclado de ouro: "suspendo o andamento do feito..."
É muito
difícil combater o preconceito e a consequente discriminação no Brasil, já que
há um véu de igualdade passando por trás das desigualdades. No Brasil há uma
aparência de que todos são iguais porque as pessoas fingem se misturar nos
espaços públicos e privados. Todavia, todos conhecem o peso de seus valores
operados na terrível bolsa de valores humanos.
Nessa
simbologia os brasileiros sabem, por ilustração, que a pele branca vale mais do
que a negra; que a pessoa com deficiência vale menos que a pessoa sem
deficiência; que a toga do ministro presidente do CNJ vale mais que o uniforme
do gari, do empregado doméstico, do contínuo...
Trocando em
miúdos: quem não é amigo do rei está achatado pela verticalização simbolicamente
instituída em solo brasileiro. Há brasileiros que se acham mais
fortes/privilegiados que os demais de menor hierarquia. Como sabiamente
escreveu o antropólogo Roberto da Matta em seu livro "O que faz do brasil,
Brasil", temos arraigado em nossa cultura a "DESIGUALDADE
SIMPÁTICA". Funciona assim: eu sou o seu opressor e vou sugar o seu sangue
sorrindo, de forma simpática. Por seu turno, você oprimido me sorri de volta,
simpaticamente.
Dando um
giro nas remanescentes imagens gravadas em meu cérebro, lembro-me do pintor
renascentista Leonardo da Vinci, em sua obra a "Mona Lisa". Parece que
em seu sorriso enigmático há um segredo, tal qual o escondido na
"desigualdade simpática" brasileira para os olhos dos estrangeiros
que vieram nos visitar na Copa e que voltarão para as Olimpíadas e
Paralimpíadas.
Na palestra
inaugural feita pelo ministro Barroso (STF) na XXII Conferência, petrifiquei ao
ouvi-lo fazer propostas - objetivando melhorar o Brasil - fincadas na ética.
Todas, teoricamente, lindas! Citando Ghandi, salientou: "Devemos ser a
mudança que queremos ver no mundo."
Na minha
fala mostrei bem o quão distante está o pensamento e ação dos integrantes do
STF. Entre a gramática/Constituição/Convenção e os reais julgamentos/prática há
um gigantesco abismo. Certo é que não basta falar em ética sem ser ético. Ora,
se o ministro Barroso fosse ético faria a sua parte. Como? Simplesmente tomando
iniciativas, levantando bandeiras para retirar do ar o sistema do PJe, já que
constitui monstruosa DESIGUALDADE entre os operadores do Direito. Ele está
vivendo o drama com os advogados, juízes, promotores... pelo que sabe - mas
finge não saber - do PJe que infunde terror, espectros, sombras que desespera a
toda advocacia nacional. Triste reconhecer o discurso totalmente desconectado
da ética proferido, com veemência, do admirado ministro Barroso. Poxa, bem que
ele poderia fazer a sua parte para um PJe acessível para todos, não acham?
A
solidariedade é o sentimento que nos faz humanos, pelo que ofereci vendas para
que os participantes da minha palestra pudessem, verdadeiramente, sentir a
realidade da pessoa cega. Os humanos pensam que para serem éticos, basta estar
apenas no lugar do outro. Não; é bem mais. Realmente é preciso adentrar no
sentimento, na alma do outro. Por isso é que precisamos fomentar o respeito à
subjetividade e a dignidade da pessoa humana.
Olhos amigos
que descreveram-me a cena contaram que as fisionomias eram de consternação e
desespero. Alguns puxaram as vendas mais para o nariz, já outros para a testa,
em nítida finalidade de criar um feixe de luz que lhes amenizasse a escuridão.
Somos éticos quando temos respeito e deferência por alguém, com o vizinho, com
a cidade, com os animais, com o planeta. Oportuno também agradecer a todos os
participantes que usaram as vendas, sentindo na pele a dor de ser excluído.
Como
humanista que sou sempre deixo aflorar um dos nossos "mandamentos",
qual seja: A tecnologia nos dá os meios, mas valores humanos devem propor os
fins. Desse importante detalhe deveriam se ater os e-juízes do CNJ e os
e-ministros do STF. A tecnologia não pode matar o seu criador!
A
solidariedade se fez presente e a prova dessa afirmação está na aprovação, por
unanimidade, da proposta que apresentei ao final do painel. Assim, foi
aprovada, sob fortes aplausos, que o CNJ tem até o dia 31 de março de 2015 para
apresentar um NOVO PJe conforme manda a Convenção de Nova Iorque e o planetário
Consórcio W3C, sob pena de, não o fazendo, ser o BRASIL DENUNCIADO AO COMITÊ SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA DA ONU, com fundamento no Protocolo Facultativo assinado em
março de 2007 (juntamente com a Convenção), por flagrante descumprimento ao
tratado internacional, do qual o Brasil é Estado-Parte.
A aprovação
acima é muito significativa, já que a Plenária da XXII Conferência é soberana e
caberá ao Conselho Federal da OAB atender o determinado em 21 de outubro de
2014. Avançamos!
Nesta
madrugada minha filha e eu discutíamos o poema "O cisne", do grande
poeta francês Charles Baudelaire, e peço licença aos leitores para transcrever
pequeno trecho:
"(...)
Um cisne que
escapara de seu cativeiro
E, com os
pés palmados esfregava no chão
Sua branca
plumagem, chegou a um ribeiro
Cujo leito
era seco, e, abrindo o bico, então,
Na poeira
aflitamente as asas a banhar,
E dizia,
saudoso do lago natal:
'Água, vais
chover quando? Raio, vais troar?'."
Tal qual o
cisne de Baudelaire, fico a perguntar:
Poder Judiciário, vais nos incluir quando? PJe, vais ser acessível?
DEBORAH PRATES.