Pelo
abaixo exposto não restará dúvida de que falta diálogo entre os movimentos
feministas e o movimento das pessoas com deficiência, destacando-se, para o
momento, as mulheres com deficiência. É preciso praticar a sororidade para
avançarmos na igualdade de gênero. Afinal, todas têm em comum a terrível
opressão!
Prova dessa lacuna está na invisibilidade da mulher
com deficiência. É notório a ausência de percepção das mulheres sem deficiência
com relação as suas iguais com deficiência. Tanto é assim que nas rodas de
conversas/eventos esse seguimento não é chamado. Eis a primeira violência
contra as mulheres com deficiência!
Então, mister se faz traçar um breve panorama da
gigantesca violência a que estão sujeitas as mulheres com deficiência, a fim de
que a coletividade, consciente, passe a lhes dar voz, de sorte a levá-las ao
empoderamento. Como conseqüência, saberão enfrentar a opressão, as situações de
riscos, maus-tratos, coerção econômica, exploração de toda ordem, tanto no lar
– dentro do seio familiar – como fora dele. A violência no âmbito doméstico
deixa mais difícil a sua detecção por torná-la invisível à cegueira voluntária
da sociedade.
Além das violências sofridas pelas demais mulheres, as
com deficiência padecem também daquelas decorrentes do preconceito e seguida
discriminação oriundas da deficiência. Por isso é que não são vistas como
violências baseadas no gênero.
No entanto, os abusos contra mulheres com deficiência
ultrapassam, em muito, os crimes que atingem as mulheres sem deficiência.
Peculiar, valendo destacar que as mulheres com deficiência sofrem mais
preconceito que os homens com deficiência.
Há um artigo intitulado Deficiência, direitos humanos
e justiça de autoria de Débora Diniz, Lívia Barbosa e Wederson Rufino dos
Santos, que traz à tona o império do paternalismo até mesmo com a deficiência,
como mostra o pequeno trecho:
“Mas esse silêncio foi desafiado com a entrada de outras
perspectivas analíticas ao modelo social, em especial com o feminismo. Não por
coincidência, o modelo social da deficiência teve início com homens adultos,
brancos e portadores de lesão medular (DINIZ, 2007, p. 60). (…) A inclusão
social dessas pessoas não subverteria a ordem social, pois, no caso deles, o
simulacro da normalidade era eficiente para demonstrar o sucesso da inclusão.
Ainda hoje, os sinais de trânsito ou as representações públicas da deficiência
indicam um cadeirante como ícone” – Deficiência,
direitos humanos e justiça.
Reli, faz pouco, a obra O Corcunda de Notre Dame, na
qual Victor Hugo descreve o personagem Quasímodo com os seguintes atributos: “Batizou seu filho adotivo, e o chamou Quasímodo, fosse por
querer assinalar assim o dia em que o encontrara, fosse por querer caracterizar
por meio daquele nome até que ponto a pobre criaturinha era incompleta e mal
desabrochada. Com efeito, Quasímodo, zarolho, corcunda, torto, não deixava de
ser um quase alguém”. (HUGO,
Victor. O Corcunda de Notre-Dame. São Paulo: Editora Três, 1973, p. 120)
Como um “quase alguém”: era desse modo que a Idade
Média enxergava as pessoas com deficiência. Inacreditavelmente em 2016 os
humanos ainda veem os integrantes desse seguimento de forma idêntica. E por
conta do machismo que nos assola é que a mulher com deficiência,
simbolicamente, vale menos que o homem com deficiência.
Em 20 de dezembro de 1993 a ONU, através da Declaração
sobre a Eliminação da Violência contra Mulheres, definiu a violência da
seguinte forma:
Artigo 1: O termo
“violência contra mulheres” significa qualquer ato de violência baseada no
gênero que resulte, ou provavelmente resulte, em dano ou sofrimento físico,
sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo ameaças de tais atos, coerção
ou privação arbitrária de liberdade, que ocorram em público ou na vida
particular.
Artigo 2: A violência contra mulheres
será entendida como aquela que abrange os seguintes tipos, sem se limitar a
estes:
Violência física, sexual e psicológica
que ocorra na família, incluindo agressão, abuso sexual de meninas no lar,
violência relacionada com o dote, estupro cometido pelo marido, mutilação de
genitais femininos e outras práticas tradicionais danosas para mulheres,
violência cometida por pessoa não-cônjuge e violência relacionada com a
exploração;
Violência física, sexual e psicológica
que ocorra na comunidade geral, incluindo estupro, abuso sexual, assédio sexual
e intimidação no trabalho, em instituições educacionais e outros lugares,
tráfico de mulheres e prostituição forçada;
Violência física, sexual e psicológica
perpetrada ou deixada ocorrer pelo Estado, onde quer que ela ocorra.”
A moderna legislação constitucional (Constituição
Cidadã e Convenção de Nova Iorque) e legislação infraconstitucional (Lei Maria
da Penha e Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência) não foram
capazes de terminar com as crueldades agora elencadas.
Por falta de representatividade – de inclusão nos
movimentos feministas – é que os humanos se veem legitimados a abusar das
mulheres com deficiência sem o menor sentimento de culpa.
O tratamento médico despendido a elas é, no mínimo,
degradante. Comum é o SUS não ter, por ilustração, ginecologista que saiba
atender/lidar com a mulher com deficiência. Inexistem mamógrafos adaptados e
tantos outros aparelhos que se adequem às pessoas com deficiência. Os gestores
e a sociedade civil precisam conhecer o desenho universal. Muitas cadeirantes
retornam ao lar, confinamento, sem atendimento. Tremenda violência!
Houve um caso bastante emblemático de uma parturiente
surda que deu a luz a um bebê e não sabia que estava grávida de gêmeos. Após o
nascimento da primeira criança, por ignorância da equipe médica, que não
conseguiu comunicar-se com a mulher surda em LIBRAS a segunda criança terminou
morrendo. Inenarrável violência!
Outra mulher surda foi brutalmente agredida pelo
marido e ao chegar na delegacia não conseguiu formalizar a notícia em
decorrência de não haver profissional conhecedor da LIBRAS. Contundente
violência!
Ainda hoje existem correntes (contrárias a boa
legislação existente) que apoiam/obrigam o aborto e esterilização da mulher com
deficiência, mesmo sem o seu consentimento; internação involuntária em diversas
instituições; tratamentos psiquiátricos que incluem eletrochoque,
eletroconvulsoterapia, além de outros requintes de crueldade com o fito de
“anestesiar” a mulher com deficiência para a vida. É verdadeiro descalabro
humanitário!
Comum é o relato de mulheres com deficiência dando
conta de que são obrigadas a fazerem sexo com os parceiros, ante a
impossibilidade de desvencilhamento deles em decorrência das deficiências.
Afirmam que a oposição de resistências lhes renderiam: torturas,
encarceramentos e falta de nutrição. Atos de imensuráveis violências físicas e
emocionais!
A covardia nos casos de estupro se repete. Os homens
ficam seguros, por exemplo, de que: a surda não terá como se expressar; a cega
não terá como descrever a situação ocorrida ou o agressor; a cadeirante e a
muletante não terão como correr, etc. A vulnerabilidade é total! Situação que
prova ser a mulher com deficiência inessencial.
Mesmo nas grandes capitais as pessoas sem deficiência
negam os fundamentais direitos a esse nicho da população. É comum as gestantes
cegas ouvirem: Ah, você não tem juízo! Vai afogar, no primeiro banho, o neném
na banheira. Você é irresponsável em ter um filho, quem vai criar? A criança
vai cair do carrinho e você não vai perceber e ainda pode passar a roda na
cabeça dela!
Logo, a sociedade não tolera a ideia de que a mulher
com deficiência possa maternar ou, no reverso, possa optar pela interrupção da
gravidez se assim o desejar.
Hodiernamente é indiscutível que, por mais severa que
seja a deficiência, a mulher tem possibilidade de opinar em temas que lhe diga
respeito em condições de igualdade com a mulher sem deficiência. É a liberdade
ao próprio corpo.
No trabalho a situação de desprezo e descrédito não é
diferente. Dá para contar nos dedos as mulheres sem deficiência que ocupam
cargos no alto escalão nas grandes empresas. Particularmente, não conheço
nenhuma mulher com deficiência na direção de alguma. Você conhece?
Nos parlamentos pouquíssimas mulheres cadeirantes
ocupam um assento. Também na política não conheço nenhuma cega. Você identifica
alguma?
A minha realidade foi transformada, drasticamente, em
decorrência de cegueira em ambos os olhos há cerca de 10 anos. No balcão da
vida, experimentei seus dois lados, pelo que tenho autoridade para afirmar o
quão é humilhante e desumano ser mulher com deficiência nesse continental
Brasil, tão inacessível, ante a institucionalização do preconceito.
Os advogados, que também deveriam zelar pelo
cumprimento da democracia, igualmente discriminam as mulheres com deficiência,
como prova o Provimento 164/2015 do CFOAB, que cria o Plano Nacional de
Valorização da Mulher Advogada. No texto estão enumeradas as mulheres
contempladas, sendo que nesse rol não estão as mulheres advogadas com
deficiência. Estas foram excluídas pelas mulheres advogadas sem deficiência.
Sororidade seletiva! Contradição?
Absolutamente esquecidas, ignoradas, nos parcos
levantamentos e estudos sobre as mulheres com deficiência, estão aquelas com
deficiência psicossocial e deficiência intelectual. A omissão e a falta de
informação dos gestores são também forma de violência contra esse sofrido
seguimento. Absoluto pouco caso!
As situações acima mostram, com clareza, o baixo
conceito que a sociedade brasileira nutre pelas mulheres com deficiência,
calcado, tão-só, nos respectivos estereótipos.
A ausência das acessibilidades em todas as suas
nuanças, em especial a atitudinal, caracteriza uma das maiores violências
contra as pessoas com deficiência, uma vez que lhes furta a oportunidade para a
conquista da – tão sonhada – igualdade com quaisquer mortais.
Finalizo este artigo com uma reflexão: o tempo não
está nem aí para a nossa vida. Porém, a nossa vida está intrinsecamente
atrelada ao tempo. Falo do tempo presente; do aqui e agora. Desse modo, a falta
das acessibilidades está subtraindo o tempo de vida das pessoas com deficiência
em tempo real. Estas não têm o direito à cidade no sentido lato
Sensu. Vale
dizer que não me refiro, tão-só, a simples noção de ruas e praças. Quem irá
restituir ao seguimento das pessoas com deficiência o tempo passado, perdido de
vida? Mortos vivos? É necessário nervos de aço em mulheres de muita fibra!