sexta-feira, 20 de junho de 2014

Sub-humanos ?!

 SUB-HUMANOS?!




Descrição da foto para deficientes visuais: Castelo medieval francês a direita da foto, muito suntuoso. A sua frente - centro da foto - há um fosso, e a esquerda da foto ruas modernas, pessoas, árvores, jardins, caracterizando a vida pública comum.  O palácio não sobrevive sem a praça/povo.



                        Na noite de 16/6, vendo com os meus ouvidos alguns telejornais me fixei na notícia do Censo dos Magistrados, e, mais uma vez, concluí ser a pessoa com deficiência sub-humano. Triste evidência estarmos abaixo do que se considera humano. Nenhuma televisão falou na pesquisa do CNJ por inteiro, pelo que, como pessoa com deficiência, cumpre-me fazê-lo nesta crônica.


                        A pesquisa, na íntegra, pode ser checada  na Agência CNJ de Notícias (www.cnj.jus.br/censo), na qual, em dezembro/2013, foi levantado que 64% dos magistrados são do sexo masculino. Eles chegam a representar 82% dos ministros dos tribunais superiores. Em relação à composição étnico-racial da carreira, juízes, desembargadores e ministros declararam ser brancos em 84,5% dos casos. Apenas 14% se consideram pardos, 1,4%, pretos e 0,1%, indígenas. A grande mídia revelou à coletividade até este ponto da pesquisa.


                        No entanto, o pedacinho final do levantamento feito pelo CNJ ficou oculto; mas vou enfatizá-lo agora. Diz a pesquisa que existem apenas 91 deficientes no universo da magistratura, estimado em pouco mais de 17 mil pessoas, segundo o anuário estatístico do CNJ - Justiça em Números, elaborado com base no ano de 2012. Eis a prova de que somos capazes.


                         Os meios de comunicação de massa não nos percebem, nem o cNJ, já que baniu os advogados cegos da advocacia, no momento em que tornou obrigatório um sistema de peticionamento eletrônico absolutamente inacessível a esse seguimento. Terminantemente, a maravilhosa legislação brasileira para as pessoas com deficiência é, tão-só, fachada. No viver diário, pouco importa aos concidadãos se a Convenção de Nova Iorque tenha status de Emenda Constitucional, vez que, nem mesmo, o presidente do Supremo Tribunal Federal - o mesmo do CNJ - a cumpre.


                        A história do STF não registra um ministro com deficiência. Qual a razão? Ora, se a vontade - registrada no preâmbulo da CF - dos Constituintes era a IGUALDADE, bem-estar... Esse seguimento representa muito, já que 1/4 dos brasileiros. à vista disso, - proporcionalmente - deveríamos estar representados na maior Corte do Brasil, com, pelo menos, um ministro nos tribunais superiores, não?!


                        Faço questão de reavivar parte do preâmbulo da nossa Carta Cidadã: "... assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade  fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social..."


                        No cotidiano a relação entre Estado e sociedade é complexa, havendo gigantesca distância entre a gramática (leis) e a prática (ética). Verdadeiramente a sociedade brasileira é hierárquica e aristocrática. Esta forma de organização social e política, na qual o governo é monopolizado por uma classe privilegiada, vai de encontro a Lei Maior; mas é essa hipocrisia a verdadeira face do Brasil.


                        A desigualdade é estabelecida no plano do coração. Por exemplo, a escravidão acabou formalmente e não no viver diário. Houve uma época que era proibido andar descalço na Rua do Ouvidor (RJ), já que apenas a nobreza bem trajada tinha esse privilégio de passear por ali.


                        Vivemos numa ética personalizada, valendo dizer que o que se faz nas ruas é bastante diferente do que se faz em casa. Temos uma enorme dificuldade de lidar com o espaço público. Entendemos que o bem público é de ninguém, pelo que dele podemos nos apossar e fazer o que quiser. Os que se consideram mais importantes podem mais.


                        Qual o brasileiro que nunca ouviu: sabe com quem está falando? Em fevereiro último tive a honra de ir à Brasília, a convite do Conselho Federal da OAB, receber uma moção. Muito bem, por conta do meu pessocão - Jimmy Prates - as companhias me disponibilizam um local logo na primeira fileira, onde o espaço é um pouco maior. Eu estava com um amigo e sentamos lado a lado, deixando a primeira poltrona vazia. Pensamos que Jimmy se deitaria em nossos pés, não incomodando a poltrona inicial.


                        Então, ouvi: "Este lugar é meu!" Imediatamente respondi que sim; contudo elucidei quanto ao cão-guia. A voz feminina, após alguns segundos, pareceu digerir a perda do espaço para um cachorro. A viagem prosseguiu. Começamos a conversar sobre o treinamento de Jimmy; e o papo rolou, até agradavelmente. Lá pelas tantas a voz disse: "Você sabe com quem está falando?"


                        Confesso que, naquele momento, senti o meu cérebro formigar. Nossa, há quanto tempo não ouvia aquele jargão aristocrático! Respondi: "Não!" Veio a grande finalização: "Você está falando com a desembargadora..." Suavemente interagi dizendo: "E aí?!" Ouvi um bom silêncio.


                        Fiquei a pensar na cruel hipótese da queda do avião. Será que morrer desembargadora, e coisa e tal, seria muito divergente de morrer advogada anônima? Para mim rolava, tão-só, uma conversa passatempo. Eu não queria saber o cargo da pessoa com quem falava; estava simplesmente trocando ideia com um ser humano.


                        Fato é que, ainda em 2014, as pessoas que se consideram relevantes não suportam a impessoalidade, nem o anonimato. Apesar da Carta da República falar em igualdade, nada mudou na cabeça daquele que se julga dono de um cargo; esquisito constatar que as pessoas se apossam deles.


                        Indubitavelmente é difícil/complexo mudar uma cultura, principalmente numa fase em que o capitalismo selvagem tomou conta do ser. Hodiernamente o ter se sobrepôs ao ser. O humano vale pelo que materialmente ostenta/possui. Estamos mergulhados na cultura da obsolescência programada e intuitiva...


                        No Brasil, muitas vezes, as leis são feitas visando corrigir o jeitinho brasileiro, bem como seu primo/irmão: você sabe com quem está falando. Quem de nós, num dado momento da vida, nunca serviu-se do velho "jeitinho". Depois da hora do expediente, guichês fechando, no desespero de pagar uma multa, sustentamos diante do funcionário:  "É que eu estava no hospital cuidando de um ente querido... dê um "jeitinho"." Achamos que as leis são para todos, menos para nós. Eis a dificuldade de mudarmos essa cultura brasileira.


              Outra triste ilustração é a institucionalização/oficialização da corrupção. Com que frequência a mídia noticia: A corrupção aqui é tão forte que já está institucionalizada. Esse costume traz, sem dúvida, implicações sociais de toda ordem. Por tudo isso e muito mais, é que podemos afirmar que as leis não pegam no Brasil.


                        No Rio de Janeiro, no caos do trânsito, sem mobilidade urbana, o Chefe/governador anda de helicóptero, enquanto os "subalternos" se danam pra chegar ao trabalho. E o outubro eleitoral vem aí. Pelas pesquisas teremos mais do mesmo! Como mudar?


                        Nesse contexto as pessoas com deficiência, por serem tidas como minoria, levam desvantagem cultural. Prevalece a hierarquia como ordem dos humanos superiores contra os dependentes. Os homens sem deficiência veem os homens com deficiência como inferiores, melhor explicando, como sub-humanos. Daí, dá para compreender o espírito assistencialista que vigora no Século XXI em relação a estas. Por conseguinte, não nos possibilitam ocupar uma das vagas para ministro no STF. Superiores sempre achatando os inferiores.


                        Temos que nos humanizar. A história brasileira dá conta que os gestores chegam no poder sem o imprescindível senso de igualdade, desconhecendo os significados das palavras equilíbrio e limite. Como não foram introduzidos ao estudo da SOLIDARIEDADE - sentimento que nos faz humanos - não preparam a sociedade/população para conhecerem o alcance das leis, pelo que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência passa em "brancas nuvens". Apenas tornar eficaz uma legislação que contrarie um grupo PODEROSO, sem, em contrapartida, conscientizar o povo em relação a ela, terminará no próprio STF virando-lhe as costas.


                        Os costumes não são inocentes, assim como a lei não é a solução. Insisto e persisto em afirmar que a chave/saída para uma sociedade mais igualitária em oportunidades é a educação continuada. Trocando em miúdos, a prática de exercícios diários de ACESSIBILIDADE ATITUDINAL. Campanhas permanentes e não pontuais como é o nosso costume. Mas, fica a velha pergunta: a quem interessa educar o povo? No dia em que nos dermos conta de que o palácio não sobrevive sem a praça...




DEBORAH PRATES.

8 comentários:

  1. Deborah Prates, bom dia! Sábias palavras as sua nessa questão em foco, esperamos que um dia nossos direitos constitucionais virem realidade, quantas Deborah Prates serão necessárias para que essa luta tenha um final positivo! Fiquem com DEUS, parabéns por sua incansável luta, bjs de Joaquim e Valéria.

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    1. Queridos amigos Valéria + Joaquim, para vencermos o cruel preconceito precisamos de um gigantesco coro. Temos que entoar a uma só voz: Somos iguais; precisamos apenas de oportunidades! Carinhosamente. Deborah Prates.

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  2. Como sempre, cirúrgico, desmistificador e forte! Parabéns, caríssima Déborah Prates, orgulho do Brasil!

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    1. Competente e admirado juiz Roberto W Nogueira, muito obrigada. Ainda vivemos um pesadelo com a desunião dos deficientes. Na verdade, os deficientes andam como as formigas trabalhadoras; uma atrás da outra. No primeiro obstáculo que fracione a fila, todas ficam baratinadas, sem saber o rumo/direção... Carinhosamente. Deborah Prates.

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  3. Hoje estive pensando, foi uma luta e um pouco de sorte circunstancial chegar ao quadro da Ordem dos Advogados do Brasil. Foi ai que percebi que dentro do castelo, vivia-se, comia-se bem. O que me impedia e ainda impede são barreira humanas atitudinais, convencionadas. Confesso que possuo uma deficiência para saber identificar a ética na pratica. Meus amigos, com quem troco ideias, sentem a mesma dificuldade. Meus respeito aqueles que acima de tudo, quando o bicho pegou, arriscaram tudo pois sabem em um universo construído em bases Logicas, a verdadeira ética e inexorável.

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    1. Querido amigo Rodrigo, não podemos esmorecer. Não perca as suas forças, vez ser a luta diária e complexa. Sempre em frente. Carinhosamente. Deborah Prates.

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  4. Marcos Victor.
    Como eu gostaria de ter esta eloquência mostrada em suas palavras. Parabéns.

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    1. Querido Marcos Victor, muito obrigada. Com a sua ajuda, tenho melhorado nessa engenhoca tecnológica. Carinhosamente. Deborah Prates.

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