terça-feira, 10 de junho de 2014

Palhaçada

PALHAÇADA




Descrição da imagem para DV's: Palhaço acenando vestido com uma roupa azul claro com bolinhas brancas e um babado grande na gola do pescoço. Sapatos gigantes, boca e nariz vermelhos. Tufos de cabelo nas laterais laranjas e um chapéu redondo amarelo. 



Antes de lerem a crônica, sugiro que ouçam a música para entrar no clima



        Enquanto lia uma matéria publicada no jornal Folha de São Paulo - 7/6/2014 - fui me indignando, indignando, indgnando... viajando no tempo e parando em uma música que cantavam  antigamente.  Dizia assim: "Cara de palhaço Pinta de palhaço Roupa de palhaço Foi este o meu amargo fim; Cara de gaiato, Pinta de gaiato, Roupa de gaiato, Foi o que eu arranjei pra mim."


        Caramba, essa roupa feita/modelada pelos compositores Haroldo Barbosa e Luiz Reis é tamanho único; serve pra todo mundo, não excluindo nem os cegos!


        O título da matéria noticiada pela "Folha" é: "Jovens estilistas criam roupas para deficientes visuais. Como pessoa cega senti a minha dignidade aviltada. Afirmo que os "jovens estilistas" criaram uma coleção para palhaços encarnados nos cegos.


        Aproveito esta crônica para dividir o texto da "Folha" com os amigos leitores. É para gargalhar mesmo! Não fosse trágico, seria cômico. Escreve o colunista Pedro Diniz:


        "Evento de desfiles para novos estilistas, a edição de verão 2015 da Casa de Criadores chegou ao fim nesta sexta (6), em São Paulo, com a proposta inusitada: apresentar looks feitos para pessoas com deficiência visual. Leiam com atenção!


        Texturas e detalhes utilitários como bolsos para celular, elásticos em vez de botões e tecidos diferentes para distinguir os lados das roupas são exemplos usados por dez estilistas da programação.
... A jaqueta criada por ele, por exemplo, tem couro de um lado e tricoline de outro para que o usuário diferencie a frente das costas. Na calça, em vez de botões há um elástico, que facilita na hora de vestir. Num colete foi aplicado um número em alto relevo para que cada bolso seja identificado.
        As criações foram feitas em parceria com a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo com o propósito de atender às necessidades desse público."


        Ai, ai. Meus amigos, é preciso nervos de aço numa mulher de fibra para suportar tamanho descalabro. Quem são as pessoas cegas?


        Fui buscar no dicionário  alguns verbetes que traduzissem o conceito de pessoas cegas para esses "jovens estilistas", diante da malfadada coleção/2015. Como público-alvo - cega - fotografo os cérebros dessas criaturas sobre a nossa imagem com os seguintes verbetes: desprovidos de inteligência; burros, estultos, estúpidos, idiotas, ignorantes, ineptos, lerdaços, néscios, palermas, parvos, patetaes, tolos...


        Inacreditável! De quais critérios se valeram esses geniais cérebros para concluir que um cego, por ilustração, não sabe fechar um fecho-ecler, um botão, ou, o que é pior, não tem inteligência para distinguir a parte da frente da parte de trás de um casaco. Ah, e que precisam de numeração nos bolsos para identificá-los! Tenham a santa paciência!


        Verdadeiramente esses "jovens estilistas" precisam aprender mais sobre seres humanos, instintos.... Para os humanos que nunca conviveram com pessoas cegas, a imagem dos deficientes visuais fora destruída.


        Faz pouco tempo que numa novela um personagem, depois de ter ficado cego na fase adulta, tinha dificuldade em distinguir às 24 horas do dia; valendo dizer, que não sabia quando era dia e quando era noite e bem mais. O cego fora tratado como um perfeito imbecil.


        Como se não bastasse, vem, agora, essa incrível coleção INCLUSIVA. É essa a imagem que o corpo social nutre em relação aos cegos. Explicado, pois, o tratamento assistencialista dispensado às pessoas com deficiência em geral. Somos todos incapazes. Talvez venha por aí uma cartilha, em braille, intitulada: SEXO PARA CEGO.


        Esses "jovens estilistas" nos colocaram como os bobos da corte. Eram personagens engraçados que divertiam o rei na Idade Média e estavam sempre presentes na corte e no teatro popular. Eram considerados cômicos e muitas vezes desagradáveis, por apontar de forma grotesca os vícios e as características da sociedade. Retrocedemos à Idade Média!


        Viajando na história é que trago o slogan "seus problemas acabaram", lembram-se? Sim, CASSETA & PLANETA, URGENTE! Pois é, me ocorreu um bom produto para os "jovens estilistas" sugerirem às Organizações Tabajara. Que tal uma tecnologia assistiva, traduzida pelo PAPEL HIGIÊNICO INCLUSIVO? Funcionaria assim: nasceu cego, chip na bunda; ficou cego na estrada da vida, chip na bunda. No contraponto, as Organizações Tabajara entrariam com os rolos de papéis higiênicos, com a tecnologia de atrair as coisas. Tragicômico seria o cego passar pelo detector de metal nos aeroportos, hein?!


        O achômetro dos "jovens estilistas" reflete o comportamento, por exemplo, dos empresários que têm medo de contratar cegos, cadeirantes, muletantes.... para o quadro de pessoal de suas empresas. Nem posso vislumbrar a possível hipótese desses empresários terem lido a matéria ora comentada! Dirão ao fiscal do Ministério do Trabalho: Terei que colocar uma textura diferente na cadeira? E se o cego se atrapalhar ao sentar e confundir as pernas da "chaise", terei que pagar a assistência médica?


        Nesse vaivém entre passado e presente, recordei um episódio que vivi ao final de uma palestra que fiz numa escola, cuja faixa etária não passava dos 5 anos. Aberto o tempo para as perguntas, veio o seguinte carinho: "Tia, sem enxergar, como você limpa a sua bunda?" Nossa, a gargalhada foi geral. A ingenuidade e espontaneidade das crianças nos inebriam!


        Eeeeeeeeei, mas espere aí! Os "jovens estilistas" têm mais de cinco anos! Daí fica complicado interpretar o projeto em destaque. Será uma forma de Bullying, lúdica face da violência? Quem comprará as discriminatórias roupas? Com muito esforço vislumbro as famílias de cegos escondidos pela vergonha de ter um deficiente no lar. Horrível! Só podem ser tais famílias as consultoras desses "jovens estilistas". Santo Deus!


        O ministro Joaquim Barbosa, em dezembo/2013, negou um pedido meu de acessibilidade nos sites do Poder Judiciário, rasgou a Carta da República e a maravilhosa Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, e ordenou que eu, se quisesse, que pedisse ajuda a terceiros para o exercício dos meus misteres de advogada. Foi o veredito! O ministro Barbosa bateu o martelo e tomou/violentou o meu direito no grito/arbitrariedade! No mínimo, desumano/cruel. Viram, na prática, como as pessoas cegas são tratadas? E não foi pelo seu Manuel do botequim da esquina!


        Claro que, como advogada, corri atrás do prejuízo e, através de decisão em meu mandado de segurança, o ministro Ricardo Levandowsky - de DIREITO e JUSTIÇA - deferiu o pedido liminar para que eu continuasse a peticionar em papel até que o Peticionamento Eletrônico (PJe) fique conforme as normas internacionais para web (Artigo 9 da Convenção).


        Para que a sociedade passe a ver o deficiente como um igual/ irmão, será necessário que a presidenta Dilma Rousseff nomeie - para a vaga de Barbosa, um ministro COMPETENTE e DEFICIENTE para compor o seleto rol do Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido o movimento das pessoas com deficiência já está se mobilizando. Você que me lê, bem poderia ser solidário e ajudar, né? É simples, basta entrar no site abaixo e deixar o seu e-mail. Sem custos! (http://www.avaaz.org/po/petition/Supremo_Tribunal_Federal_STF_ Queremos_um_Ministro_com_Deficiencia/?nhOXkbb)


        Amigos, vejam como a chave do sucesso para uma sociedade mais humana é a prática, no dia a dia, da acessibilidade atitudinal. Seu propósito? Provocar ações transformadoras; mudar os maus hábitos arraigados nos cérebros desde o início da civilização. A coletividade há que entender que as diversidades existem na natureza como são e não como gostaria que fossem. Na realidade deficiente é o nosso Brasil, tão cheio de obstáculos, entraves de todo gênero, que obstaculizam a vida em grupo de forma IGUAL para todos. Daí é que, com facilidade, encontramos hidrantes sobre rampas, impossibilitando o ir e vir dos cadeirantes... Somos todos deficientes!


        Falando sério, as pessoas cegas têm uma vida independente sempre que a sociedade lhes permita. Precisamos de iguais oportunidades para que possamos buscar o nosso direito de igualdade. No lar, através de vários vídeos no meu canal Youtube, os amigos poderão constatar que eu desenvolvo os mesmos trabalhos que qualquer pessoa sem deficiência. Cozinho, lavo, passo, limpo vidraças e vaso sanitário, atendo a porta e o telefone, subo e desço com o meu cão-guia com total liberdade... Tenho algumas ferramentas tecnológicas que me propiciam saber as cores, ler diversos rótulos, interagir no computador com todos os sites acessíveis/legais/solidários e muito mais. Ah, informo que me visto sozinha e corretamente, sem cogitar em comprar/adquirir quaisquer produtos da famigerada coleção/2015, criada pelos "jovens estilistas".


        Logo, os cegos não precisam da discriminatória coleção inclusiva - 2015 - para viver com mais conforto. Necessitam, sim, de tecnologia mais barata (menor custo) de produtos como: iphones, notebooks, canetas etiquetadoras/falantes, bens domésticos com botões perceptíveis e tudo mais que lhes deem melhor liberdade em todos os lugares. A frente e as costas da blusa, colete, jaqueta; texturas identificadoras do direito e avesso... nada dessas INUTILIDADES/BOBAGENS são necessárias.


        Concluo essa crônica com um conhecido pensamento de Martin Luher King: "Aprendemos a voar como pássaros, e a nadar como peixes, mas não aprendemos a conviver como irmãos."


DEBORAH PRATES.

7 comentários:

  1. desprovidos de inteligência; burros, estultos, estúpidos, idiotas, ignorantes, ineptos, lerdaços, néscios, palermas, parvos, patetaes, tolos... desumanos. Preciso criar uma palavra/adjetivo desprovido de qualquer histórico etimológico para definir/qualificar esses tipinhos extra planetários. Talvez sejam refugiados de um planeta onde eles imperavam por terem somente a visão como sentido e cérebro de camarão.

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  2. Belo texto Deborah, o que falta, no meu ponto de vista, é um dialogo entre as pessoas. As distorções sõ irão desvanecer se houver convivencia plural, e, se a própria pessoa com deficiência falar por si, não deixando que outros façam isso, porque pelo que percebo, dificilmente, o outro tem uma visão igualitária, geralmente, é carregada de pressuposto mesmo que não tenha existido má intenção.
    Carla

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  3. Eu imagino que a citada Secretaria PcD de SP, não teve uma pessoa qualificada para escolher e aprovar este projeto! É de extrema ignorância! Enquanto nós militantes do movimento PcD lutamos para mudar a cultura de que somos "incapazes, pobrezinhos, ignorantes, etc..." vem um Gestor público e aprova uma OFENSA dessas. É um ótimo assunto para ser incluído dentro de Fóruns, Seminários e até mesmo Conferências! Estou irritada, indignada! Parabéns pelo sublime texto Débora.

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  4. Deborah,

    Partilho de sua indignação quanto à moda para pessoas com deficiência visual. Pessoas com este tipo de deficiência, surdos, pessoas com deficiência intelectual não precisam de roupas acessíveis (ou seja, com acessibilidade, termo que prefiro a "adaptadas"). Precisam, sim, de outros apoios e tecnologias assistivas, como vc bem enumerou.

    Entendo que cadeirantes, pessoas com nanismo ou com outras dificuldades de movimentar membros superiores e inferiores precisam, sim, de roupas acessíveis. Uma mulher com nanismo, por exemplo, tem todo o direito de vestir uma roupa sedutora, feita para sua idade e altura - não tem sentido vestir uma roupa com motivos infantis, só porque é de seu tamanho.

    Essa coleção de moda traduz e reforça a visão estigmatizante vigente, há séculos, que associa a cegueira à "noite eterna" (certamente um pesadelo, do qual ninguém quer participar) ou à imbecilidade e incompetência.

    Há que reagir energicamente, sim!

    Abraços inclusivos,

    Marta Gil

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    1. Querida amiga Marta Gil, muito bacana ler essa sua interação tão lúcida e cheia de sabedoria. Tenho para mim que a nossa união será essencial para conscientizarmos a sociedade de que não somos os burros da corte, razão pela qual retroceder à Idade Média, em 2014, é gesto de pura ignorância + preconceito. Você foi linda nesse comentário e tem os meus aplausos. Carinhosamente Deborah Prates.

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  5. É Débora, ainda falta muito. Eu vibro pela sua coragem de seguir em frente pq eu, cagona, já teria desistido há muito...pessoas que fazem esse tipo de proposta não são diferentes daquelas que pintam o pelo ou as unhas do cachorro. Da mesma forma me lembro de como a burguesia de uma forma geral fica feliz quando chega próximo do Natal para poderem ser "generosos". É um tal de fazer sacola pra orfanato e/ou asilo....e durante o ano inteiro não conseguem tirar um único dia das suas vidas para visitar aquelas pessoas. Quando eu era jovem fiz parte de um grupo chamado Convergência Socialista que mais tarde viria a se transformar em partido político, o PSTU. Um dia eu questionei um dos dirigentes como ele podia ter tanta certeza de que era aquilo que o trabalhador precisava. Será que eles querem mesmo a"revolução do proletariado"? Todos éramos estudantes e/ou bancários. Com que direito podíamos decidir o q era melhor para um trabalhador braçal da metalúrgica lá da Baixada???
    Gostaria de saber quantos cegos participaram na criação dessas roupas...

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    1. Queridíssima amiga do coração Tula, estou com saudades dos nossos papos/reflexões. Bem bacana e sincero esse seu depoimento com o qual concordo inteiramente. esses "jovens estilistas" precisam aprender mais sobre os seres humanos, instinto, solidariedade e amor. Esses são as aberrações advindas da cultura da obsolescência, na qual o ter se sobrepõe ao ser. São os verdadeiros tecnumanos. No lugar do coração, possuem um hard disk e se relacionam com as pessoas, em geral, através do mouse. São seres frios, calculistas financeiramente e esperam que o lucro lhes trará a felicidade que não conseguiram por serem incapazes de amar o próximo como a eles mesmos. Logo, seres profundamente nas trevas e infelizes. O pior cego é o que não quer ver. carinhosamente Deborah Prates

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