Primeira parte da palestra que faria no Senado hoje. Está dividida em
quatro partes, as quais sairão sucessivamente. Não consegui embarcar devido a
um erro burocrático. Mas a palestra seguiu para o e-mail da Senadora Vanessa
Grazziotin. A assessoria me comunicou que todos fizeram uma manifestação sobre
a minha ausência... Coisas da vida. Para a minha alegria, os artigos estão
sendo publicados pelo Justificando/Carta Capital.
Quarta-feira, 6 de dezembro de 2017
Da violência sexual contra mulheres com deficiência: a invisibilidade
Sobre quem escreve
A autora passou a se
interessar pelo feminismo (movimento de transformação social) faz cerca de 11
anos, a partir das opressões, injustiças, que passou a viver após a cegueira.
Percebeu que, além da
opressão que experimentava decorrente de gênero, existia outra, aquela
decorrente da deficiência. Percebeu-se invisível diante dos olhos
preconceituosos de uma sociedade capitalista, machista e racista.
Diante desses fatos,
tornou-se feminista, no ponto de vista da interseccionalidade. Esta nos remete
a um conceito em construção, pelo que, como mulher com deficiência, encontrou
abrigo, apoio, para prosseguir na existência.
Entendeu que a mulher,
exercendo preponderantemente o papel de cuidadora dos filhos/família, teria o
poder de educar pessoas melhores no que diz respeito ao quesito igualdade, vez
que esta se inicia no seio familiar.
As crianças, à vista
disso, quando encontrassem na escola coleguinhas com deficiência não
enxergariam neles diferenças por conta, tão-só, do estereótipo, tal qual
acontece em 2017.
Dessa forma, não há a
menor dúvida do quanto o feminismo agrega com a causa da pessoa com
deficiência. Essa afirmação pode ser conferida no belíssimo texto intitulado
“Deficiência, direitos humanos e justiça” de Débora Diniz, Lívia Barbosa e
Wederson Rufino dos Santos, interessando para o momento o trecho a seguir
transcrito:
“O tema da igualdade
de gênero é um plano de fundo na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, desde o preâmbulo até as seções específicas sobre a proteção às
meninas e mulheres com deficiência e o papel das famílias das pessoas com
deficiência (ONU, 2006a).”
Na sua vivência
certificou-se que o ser que habita um corpo que foge aos padrões de
“normalidade” imposto pela indústria da moda está fora do ângulo de visão da
coletividade. Está fora do mundo! Ao longo deste trabalho vem apresentar
sugestões de intervenções que respeitem os direitos humanos, fundamentais,
dessas mulheres. Para tanto será analisado o conjunto de circunstâncias da
realidade desse grupo populacional.
Quem não é visto, não é lembrado
Antes de enfrentar o
tema, faz-se necessário tecer algumas abordagens acerca da violência, opressão,
que agasalha o contexto das pessoas com deficiência em geral. Isto porque as
opressões se somam até chegar a sexual.
Sem dúvida é a
invisibilidade social o primeiro sintoma do preconceito decorrente da
deficiência. No balcão da vida a autora experimentou seus dois lados, pelo que
pode afirmar que enquanto vidente era enxergada pela coletividade. Após a
cegueira, notou-se invisível, despercebida. Quis, então, conhecer a razão desse
fenômeno e passou a pesquisar, tanto nos livros, quanto na prática, sobre o
assunto. Ficou estarrecida com o que encontrou.
Releu a obra O
Corcunda de Notre-Dame, de Victor Hugo, e a tomou como ponto de partida até os
dias atuais. A história dá conta da discussão do tema da deficiência na Idade
Média. A vida de Quasímodo, personagem externamente disforme e grotesco, mas
também terno, ingênuo e apaixonado, passada em Paris, no Século XV, mostrou ao
homem cristão que nem tudo na criação é humanamente belo, que o feio e o
disforme convivem com o gracioso, que o grotesco é o reverso do sublime.
Quasímodo é o exemplo
de como a pessoa com deficiência era concebida e tratada na Idade Média. O
próprio autor, ao descrevê-lo, o fez com os seguintes atributos:
“Batizou seu filho
adotivo, e o chamou Quasímodo, fosse por querer assinalar assim o dia em que o
encontrara, fosse por querer caracterizar por meio daquele nome até que ponto a
pobre criaturinha era incompleta e mal desabrochada. Com efeito, Quasímodo,
zarolho, corcunda, torto, não deixava de ser um quase alguém.” –
grifo meu – (HUGO,
1973, p. 120).
No dia 3 de dezembro
de 2017 – Dia Internacional da Luta das Pessoas com Deficiência – 1/4 da
população brasileira (último censo demográfico do IBGE) ainda é tratado como
“quase alguém”.
A sociedade é,
absurdamente, insensível em relação aos interesses desse grupo de humanos.
Prefere dar-lhes assistência, auxílio, benefícios, olhares caritativos, ao
invés de promover a conscientização, de sorte a mudar a ordem social e política
que as oprime.
Patente, face a essas
breves considerações, que esse olhar de piedade, patriarcal, configura a
basilar violência, vez impedir o desenvolvimento humano destas pessoas.
Ao constatar a deficiência, a coletividade cobre os ombros da pessoa com
a impactante capa da invisibilidade social.
Tudo mudou na vida da
autora a partir do marco da cegueira em ambos os olhos. De pronto mudou a forma
com que era recepcionada. Antes era tratada por Dra. Deborah Prates, após a
deficiência passou a ser nomeada de advogada cega. Perdeu o nome. Passou a ser
não vista. Mas como, se era o mesmo ser, a mesma essência?
O uso da bengala fora
o suficiente para que a vizinhança a julgasse “quase alguém”. Depois, por
questão pessoal, conquistou um cão-guia. Por isto, passou a ser chamada: a
mulher do cachorro. Em um momento de total vulnerabilidade conscientizou-se que
o ser que habitasse um corpo que não mais se encaixasse na fôrma da indústria
da moda estaria banido da vida.
A sociedade enxerga apenas a deficiência e não o ser. Vê-se, pois,
tão-só, a bengala, o cão-guia, a cadeira de rodas, a muleta, etc.
Quando nos dirige a
palavra o faz em tom de piedade e em tom de diminuição. Um cadeirante adulto é
cumprimentado com um afago na cabeça. Se for perto do horário de refeição, por
ilustração, lhe é perguntado: “Vai papá, ou já papou?” Desta maneira, a pessoa
com deficiência é infantilizada para todos os efeitos sociais e legais. É que
para elas a magnífica legislação pertinente não lhes é aplicada por ainda não
serem alguém.
Pesquisando a
história, verificou-se que a segregação social das pessoas em classes, grupos,
é mais antiga que o capitalismo. No entanto, este a perpetua de modo natural. É
essa naturalização da violência/ opressão que precisa ser desfeita,
desconstruída, com urgência. Esse é o intuito do presente trabalho.
Nessa premente
desconstrução é que tem lugar os exercícios de acessibilidade atitudinal. Mudar
hábitos e comportamentos relativamente as pessoas com deficiência é a saída
para um Brasil mais igual. Educar é preciso.
Viver é ter a
oportunidade de experimentar a condição humana. A sociedade, com a opressão
imposta às pessoas com deficiência, está subtraindo o tempo de vida dessa
significativa parcela da população.
Do valor simbólico da mulher com deficiência
Vale registrar que o
valor simbólico da mulher com deficiência é extremamente baixo na “bolsa de
valores humanos”.
No texto citado na
primeira parte deste trabalho (Deficiência, direitos humanos e justiça)
destaca-se outro trecho:
“Mas esse silêncio foi
desafiado com a entrada de outras perspectivas analíticas ao modelo social, em
especial com o feminismo. Não por coincidência, o modelo social da deficiência
teve início com homens adultos, brancos e portadores de lesão medular (DINIZ,
2007, p. 60), um grupo de pessoas para quem as barreiras sociais seriam
essencialmente físicas e mensuráveis. A inclusão social dessas pessoas não
subverteria a ordem social, pois, no caso deles, o simulacro da normalidade era
eficiente para demonstrar o sucesso da inclusão. Ainda hoje, os sinais de
trânsito ou as representações públicas da deficiência indicam um cadeirante
como ícone.” – grifos meus – (DINIZ, BARBOSA, SANTOS, 2009, pp. 71 e 72).
Vê-se, portanto, que a
figura do homem representa a deficiência. Hodiernamente, as placas indicativas
já estão mudando. Porém, o conceito do homem como representante da espécie
humana ainda é patente na nossa sociedade.
Presentemente a nossa
denominação taxonômica é Homo sapiens. É o nome dado à espécie dos seres
humanos. A expressão (latim) significa: o “homem sábio”.
Ora, essa reprodução
perpetua o sistema patriarcal, bem como o machismo. Não faz sentido
generalizarmos a espécie nos homens, vez que existem as mulheres. Óbvio que sem
elas o mundo não existiria. Então, são e sempre foram as mulheres fundamentais
para a representação da espécie humana, tanto quanto os homens, ainda que
limitadas por eles desde sempre, em decorrência da cultura.
Logo, usarmos “homem”,
no sentido lato senso não é justo para com as mulheres, as quais também compõe
a história da civilização. Desse modo, em 2017 o homem não pode mais ser
reconhecido como o ser humano padrão.
Melhor seria se a
espécie humana fosse representada pela expressão: SER HUMANO.
Face ao exposto, fica
nítido – simbolicamente – que o homem sem deficiência vale mais que a mulher
sem deficiência e que ambos, conjuntamente, têm peso maior que o homem com
deficiência. Computando-se as três figuras nesse contexto simbólico, conclui-se
que são mais valiosas que a mulher com deficiência. Estas não são visíveis, nem
mesmo, por suas iguais sem deficiência. Tanto que não são chamadas para as
rodas de conversa feministas.
Com essa análise
simbólica fica lógico afirmar que as mulheres com deficiência estão bem mais
vulneráveis à prática dos crimes sexuais que as suas iguais sem deficiência,
tanto nos espaços privados (lar), quanto nos públicos (ruas), como se verá no
curso dessa apresentação.
Deborah Prates é
advogada, feminista, membra efetiva do Instituto dos Advogados Brasileiros
(IAB), presidente da Comissão da Mulher do IAB e membra da Comissão de
Direitos Humanos do IAB. Integra os coletivos feministas PartidA e
Movimento da Mulher Advogada do RJ. Foi a primeira advogada com
deficiência a ingressar nos quadros do IAB em 174 anos de existência.
Reportagem disponível em:
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